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FOTOGRAFIAS DA DISTÂNCIA Filipe Pinto 1. Quando a Inês Pais me pediu para falar na sua exposição eu estava precisamente a trabalhar num texto que se referia à pele e a algumas das suas leituras possíveis. Esta coincidência potenciou mas igualmente restringiu o que aqui se poderia dizer. Não vou pois guiar uma visita, nem tão pouco comentar as peças expostas. Acompanhado por alguns textos do filósofo italiano Giorgio Agamben, vou apenas fornecer linhas de leitura, ou se se quiser, possibilidades de ligações que, espero, enriquecerão o contacto e a crítica destas obras. Este texto tem uma estrutura espasmódica, desatenta – o desatento é apenas alguém atento a outra coisa, ou que tem uma atenção nómada ou fugidia. Como contou uma vez Jean Echenoz a Vila-Matas, “’Passa um pássaro’, disse-me. ‘Sigo-o. Isso permite-me ir onde quiser no discurso.’ Pareceu-me uma lição muito interessante e a ter em conta e recordo que me disse que, vistas assim as coisas, qualquer linha de um relato podia transformar-se, por exemplo, numa ave migratória.” É este o funcionamento que explica a digressão que se inicia pelo limite, e vai passando pela abertura, pelo rosto, pela vergonha, pela fotografia, pela cosmética, pelo espelho, pela política, pela aura, pela distância, pelo desejo, pela duração, pelo tempo, pela morte, pela solidão, pelo camaleão. O suporte destas séries é o papel fotográfico mas, antes disso, é a própria pele da artista; não me vou referir aqui ao carácter performativo de algumas destas peças, nem sequer ao estatuto de documento que estas fotografias poderão apresentar. Antes, vou começar pela pele, pelo mais profundo, diria Valéry. Toda a pele é superfície; toda a superfície é limite; todo o limite é abertura. Podemos estranhar a conclusão – não são afinal os limites o contrário de aberturas? Um limite é algo (uma pele, uma superfície, uma convenção, uma lei) que divide dois campos, duas coisas, e assim cria imediatamente um interior e um exterior, um dentro e um fora, um aceitável e um inaceitável. Um limite delimita, portanto, torna um espaço finito; mas é esse confinamento que finalmente permite o salto, que permite a fuga, a aventura e a viagem ao estrangeiro – “apesar de o finito ser fechado, é sempre possível esperar sair dele, enquanto que a infinita vastidão, por ser sem saída, é prisão.” Só o espaço finito proporciona o fora, diz Blanchot; como sair do infinito? Não deixa de ser notável que a fronteira – um limite precisamente – tanto denomina o muro inultrapassável como o exacto local onde este se abre e convida à passagem. Mas há ainda outra questão que me permite afirmar que o limite é abertura. Um limite, como já se viu, cria um interior e, acima de tudo, um exterior – tenta resguardar um espaço e assegurar uma comunidade. Mas o que é este exterior de que falamos? Em A Comunidade que Vem, Agamben escreve, “importante aqui é o facto de a noção de “exterior” ser expressa em muitas línguas europeias, por uma palavra que significa “à porta” (fores é, em latim, a porta de casa, em grego, significa literalmente “na soleira”). O exterior não é um outro espaço situado para além de um espaço determinado, mas é a passagem, a exterioridade que lhe dá acesso – numa palavra: o seu rosto, o seu eidos. A soleira não é, neste sentido, uma outra coisa em relação ao limite; é, por assim dizer, a experiência do próprio limite, o ser-dentro de um exterior.” Temos assim que a nossa pele, o nosso envelope físico, não é algo que nos resguarda do mundo nocivo, não é o contentor impermeável que nos permite evoluir incólumes; pelo contrário, como qualquer limite, ela é abertura, e é através dela que se nos oferecemos ao mundo, e que ele nos transforma e nos transtorna. A pele não se cerra – não fechamos a pele, como fechamos os olhos ou tapamos os ouvidos e o nariz. A pele (o tacto) está sempre aberta, alerta, para receber indiscriminadamente o prazer e a dor. A pele está sempre a receber; só o hábito, que por sua vez leva à distracção, nos permite não sentir tudo o que contacta a pele, tudo o que nos toca. A sabedoria da pele é a distracção e o calo. O calo cala a pele, claro, e a distracção adormece-a. A experiência da pele é a estética e o seu verbo é sentir; o contrário é a anestesia – aisthesis (estética), anaisthesis (anestesia). 2. Podemos falar de uma pele da pele, uma abertura da abertura; ou seja, onde é que a pele – que já é abertura – se escancara? Diria, aliás como Agamben já deu a entender, que é no rosto. O rosto é abertura, dirá explicitamente o filósofo num outro texto. O rosto está sempre descoberto, e é pelo rosto que se é descoberto; descoberto e reconhecido, pelo amigo e pelo polícia. Se é certo que a pele e os pêlos se arrepiam no frio e no temor, que o corpo treme no desamparo, salta na alegria e cai no ferimento e na dor, é no rosto que verdadeiramente as nossas sensações, reacções e expressões encontram casa. É essa a explicação para a profusão de músculos e tendões que povoam o subsolo do rosto, e são estes os factores que constituem a abertura desta pele da pele. É pelo rosto que olhamos e reparamos que somos olhados – só olham para mim quando me olham na cara; só me sinto descoberto quando reconheço o reconhecimento ao cruzar o olhar, “é apenas onde eu reconheço um rosto que o que está de fora me acontece, que eu reconheço uma exterioridade”; e é aí que o mundo se disponibiliza, e é também por aí que me envergonho. O rosto e os olhos são os órgãos da vergonha; vergonha, que é prova de uma intimidade – “A vergonha é o sinal de uma inaudita e tremenda proximidade do homem em relação a si próprio.” O rosto é o que de mim está fora, e a vergonha é o meio de acesso a esse fora, porque na vergonha olhamo-nos como se estivéssemos de fora, ou melhor, na soleira, no ser-dentro de um exterior, na espessura impossível – nem dentro nem fora –, numa deriva funâmbula e, claro, perigosa. O rosto é essa corda circense, lugar de desequilíbrios e quedas, feridas e cicatrizes. 3. O que será a fotografia senão uma pele sem espessura? A fotografia é algo que se intromete entre o papel e o mundo; e não raras vezes, engendra a sua própria profundidade por cima desse papel – lembro-me que Jeff Wall cortava algumas fotografias suas para lhes reduzir a sua magia, e, acima de tudo, para fazer ver a sua pele, o seu papel superficial; o papele, diria eu. Temos assim que o que aqui se mostra é algo como a pele da pele da pele, ou seja, a fotografia do rosto da pele, ou ainda, a fotografia da abertura da pele – fotografias de uma ferida? Esta estrutura proporciona um jogo lógico – A pele da pele da pele; A abertura da abertura da abertura; A fotografia do rosto da pele; A pele da pele da abertura; A pele da abertura da abertura; A abertura da pele da pele; A abertura da pele da abertura; A fotografia do rosto da abertura; A fotografia da abertura da abertura; A pele do rosto da abertura; A pele do rosto da pele; A abertura do rosto da pele; A abertura do rosto da abertura; A fotografia da abertura da pele; A fotografia da pele da abertura; – todos sinónimos destas peças. 4. Nos contos de Clarice Lispector há uma figura recorrente; por entre a prosa exacta e cristalina acontece emergir a mulher que se senta ao espelho e pensa e se penteia; se senta, se pensa e serpenteia; enquanto o pente trabalha meditativo, diz ela, divorciando, desunindo, ordenando os fios do pensamento e do cabelo, digo eu. O boudoir, o toucador, como espaço de reflexão por entre o reflexo no espelho e no espírito, e os movimentos distraídos mas consequentes da mão treinada. É uma imagem poderosa – o duplo no espelho, os vapores dos perfumes, as cores da cosmética, os cremes da máscara, as nuvens dos pós de arroz; a personagem que se senta e a já outra que se levanta; ou a preparação matinal para a perfeição do dia, e o desfazer nocturno dos emaranhados, o seu desenlace tal como numa história, para um sono conseguido. Lembremos, um espelho é o único objecto verdadeiramente invisível; não é transparente como um vidro bem limpo ou um rio saudável, não é quase imaterial como a poeira esvoaçante. Não, um espelho tem peso e figura (denunciada pelos seus limites), mas é invisível – tentem fotografá-lo ou filmá-lo. A sua timidez obstinada derrotará a intenção indiscreta. Quando nos olhamos ao espelho, como este não se deixa ver, só nos vemos a nós próprios, daí ser o espaço privilegiado para a reflexão, e, claro, onde esta palavra essencial adquire toda uma constelação de significados. Mas voltemos ao boudoir de Lispector, ao espaço desta reflexão, e da cosmética cósmica, aquela que resolve o caos (cosmética deriva de cosmos que por sua vez deriva do grego kosmos – bem ordenado, porque criado por um deus). Esta cosmética é aquilo que a mulher interpõe entre o rosto e o espelho, para depois o interpor entre ela e o mundo (e o cosmos) – um muro facetado, um limite, uma abertura. Baudelaire, em O Pintor da Vida Moderna, defende a maquilhagem como renúncia e ataque à natureza, “quem não verá que o uso do pó de arroz, tão tolamente anatematizado pelos filósofos cândidos, tem como objectivo e resultado fazer desaparecer da tez todas as manchas que a natureza nela ultrajantemente semeou, e criar uma unidade abstracta no grão e na cor da pele, unidade essa que, como a que o fato de banho produz, aproxima imediatamente o ser humano da estátua, isto é, de um ser divino e superior?” Cultura contra a degradante natureza, contra a verdade natural. O rosto, tal como a paisagem, é resultado de uma erosão (grutas, fendas, rugas, sinais), e esta é uma forma de o tempo se fazer ver, de se perpetuar. A máscara da maquilhagem de Baudelaire – não a verdade natural, mas a aperfeiçoada; a verdade cósmica, ordenada, como uma estátua clássica; lisa e perfeita. Inumana. A máscara que a maquilhagem interpõe entre o rosto e o mundo é afinal uma imagem; esta é a estratégia da camuflagem. “Nos animais até o ataque é uma outra forma de protecção. Assim, um camaleão, se perseguido, muda de cor, interpondo entre o seu corpo frágil e o predador uma imagem, nem verdadeira nem frágil, mas necessária.” Na verdade, no camaleão, esta estratégia é bífida, tanto serve o ataque como a defesa – a camuflagem, esta imagem, é uma imagem de sobrevivência, de vida, essencial e necessária à sanidade. (Fica por responder a pergunta que uma vez ouvi acerca deste réptil estrábico, se um camaleão cego muda ou não de cor). 5. Quando a Inês me falou desta exposição e me revelou o título que tinha escolhido, eu fiz, claro, uma ligação imediata com aquele breve ensaio de Agamben, O Elogio da profanação. E cito: “o termo religio não deriva, segundo uma etimologia tão insípida quanto inexacta, de religare (aquilo que liga e une o humano e o divino), mas de relegare, que indica a atitude de escrúpulo e de atenção que deve marcar as relações com os deuses, (…) religio não é aquilo que une os homens e os deuses, mas aquilo que zela por mantê-los distintos” ; uns parágrafos atrás no mesmo texto, “sagradas ou religiosas eram as coisas que pertenciam, fosse qual fosse a forma, aos deuses. Como tal, eram retiradas do livre uso e comércio dos homens, não podiam ser vendidas nem empenhadas, cedidas em usufruto ou oneradas com alguma servidão” , e ainda, “pode definir-se religião como aquilo que retira coisas, lugares, animais ou pessoas ao uso comum, transferindo-os para uma esfera separada. Não só não existe religião se não houver separação, como qualquer separação contém ou conserva em si um núcleo genuinamente religioso.” Agamben, grande leitor de Benjamin (e seu editor em Itália), parece referir-se aqui à noção de aura do crítico e filósofo alemão; relembremos, “as primeiras obras de arte surgiram ao serviço de um ritual, primeiro mágico, depois religioso. Reveste-se do mais alto significado o facto de que este modo de existência aurático da obra de arte não se separa nunca totalmente da sua função ritual”, e continua Benjamin na nota correspondente, “a definição de aura como ‘o aparecimento único de algo distante, por muito perto que esteja’ não é mais do que a formulação do valor de culto da obra de arte em categorias de percepção espácio-temporais. A distância é o contrário da proximidade. O que está longe por essência é aquilo de que não podemos aproximar-nos. De facto, uma das características principais do culto é a impossibilidade de aproximação. Por natureza, ele não deixa de ser ‘distância, por mais perto que esteja’. A proximidade que é possível estabelecer com a sua matéria em nada prejudica a distância que conserva depois do seu aparecimento.” A aura é aquela distância que sentimos, por muito perto que esteja o objecto, ao contrário do rasto, que é uma proximidade, por muito longe que esteja o animal. A aura é uma presença consagrada, o rasto, uma ausência profanada. O elogio da profanação de que nos fala Agamben é então o desfazer da distância aurática, é um movimento de restituição do uso das coisas ao homem; a profanação tem, como se percebe, um carácter eminentemente político, democrático arriscaria. Se Religio tem uma estrutura vertical, limitadora e hierarquizante, já a profanação tende a horizontalizar tudo; o mesmo é dizer, tende a disponibilizar, ao alcance da mão, tudo do mundo – “profano diz-se em sentido próprio daquilo que, de sagrado ou religioso que era, é restituído ao uso e à propriedade dos homens” (Trebazio). As práticas tribais, de pintura de pele, tão próximas da génese destas peças, são afinal movimentos verticais, em direcção aos deuses, que pelo caminho vão reforçando comunidades, gestos e famílias, criando limites e superfícies e afastando os corpos do seu peso e circunstância. Afastamento, ou melhor, distância, é, creio, a palavra-chave. A distância é o que nos une o corpo ao mundo; o mesmo é dizer que é o que une a nossa pele a tudo o resto; aquilo que nos une é a prova de que somos separados. Temos o nosso corpo limitado, antes de mais nada, pelo invólucro-pele. Ao espelho, a criança, ainda com os movimentos apenas balbuciados, reconhece o seu corpo íntegro e uno, mas, acima de tudo, reconhece-o independente do da mãe. Será talvez a primeira tragédia que vivemos. Podemos adivinhar, naquele relance fugidio, a nossa solidão perpétua, os seres separados, distanciados, que somos – amizade, amor, ou sexo são tentativas de confundir os limites dos corpos, mas a pele acaba por prevalecer; “Aproximámo- -nos mais um do outro, tanto quanto a pele nos permitia”. E é pela pele que nos fechamos em nós próprios, na lástima e no definhamento; ou pela pálpebra – finíssima pele – no desmaio e no sono. E no pensamento, como eu aqui, nesta biblioteca, a olhar para dentro a olhar para fora, pela janela – adivinho a canícula solar no descampado, entrevejo a mulher a limpar o chão com a esfregona no prédio à frente, mas sou só eu, entre a cabeça e a mão na caneta no papel. Em suma, a pele assegura a respiração do corpo e o toque do mundo – o con-tacto, se quisermos –, mas deixa incólume a nossa solidão congénita. Mas é também esta solidão que nos permite a sobrevivência, pois sabemos que na morte e no enterro a pele degrada-se e acaba por se render à digestão da terra. Quer isto dizer que a distância, a separação, o intervalo a que a pele nos condena é afinal a condição de vida. Só diferenciado do mundo pode o corpo viver e prosperar. Nathalie Sarraute escreveu que a morte é o avesso inseparável que nos acompanha durante toda a vida ; o avesso é um limite desdobrado e confuso, é a pele em carne viva, quando a pele nos deixa moribundos e se passa para a matéria do mundo. Note-se que é apenas na crosta terrestre – delicada pele, –, que a Terra se mostra fértil; só na pele a Terra fecunda, sendo o resto intestino, rochas em estado confuso, inferno movediço e calor mortal. Na Terra como no corpo, a pele é vida. Aos pouco vamos percebendo melhor o dito enigmático de Paul Valéry. Separados do mundo pela pele viva vivemos e, claro, desejamos. É a distância que nos permite desejar – por isso escreveu Blanchot que o desejo é a distância tornada sensível. Só desejamos o que não somos, o que não temos, o lugar onde não estamos. Só desejamos porque a distância se intromete entre nós e as coisas. Mas esta distância é mais tempo que espaço; o mesmo Blanchot di-lo em A Besta de Lascaux, “[o desejo] é (…) a efeverscência de todo o futuro na queimadura do instante”. No desejo, queremos conquistar o futuro com o nosso presente, colonizá-lo, e, como o guarda, impedir o acontecimento que obvia o nosso objectivo e desnorteia a nossa direcção. O desejo lança-nos no futuro, mas esse movimento parece diferente do da previsão, que tende a puxar o tempo que vem até ao nosso presente de agora, fechando-o. A previsão é uma espécie de intolerância profética, como ouvi algures; um movimento retrógrado que nos imobiliza num presente presente, sem possibilidade do espanto do futuro. Lembro-me agora de uma brevíssima nota de António Guerreiro no jornal Expresso sobre, creio, a faceta (bio)política do boletim meteorológico, e de como aí se fala de bom e de mau tempo, e assim tanto se tenta prevenir o incauto de se molhar, de apanhar frio ou de suar desmedidamente, como se impõe à partida um juízo de valor quanto ao que há-de vir, não nos permitindo sequer uma decisão própria. Para alguém que prefere a chuva como eu, chamar ao cinzento do dia mau tempo é claramente desadequado. Mas retomando, a distância, que constitui o desejo, sente-se e não se vê; é também por isso tempo e não espaço; tempo de espera ou de esperança. Quer dizer, esta distância é duração, e esta, a verdadeira matéria da vida – a duração é o sentimento da vida”, diz Handke. Borges chamará sucessão, “O homem vive no tempo, na sucessão, e o mágico animal na actualidade, na eternidade do instante”. É entre o desejo (futuro) e a memória (passado) que o nosso presente fugidio e não eterno, como o dos animais, se instala. Mas só o desejo é duração e movimento, sendo a memória, quanto muito, orientação. O desejo é a verdadeira máquina que nos movimenta, que obvia a prostração, que nos aproxima e afasta, como num pêndulo – o desejo, dir-se-ia, pendula a vida; o desejo é a respiração característica do corpo vivo. Num acto certamente sacrílego, arriscaria dizer que Religio quer afinal dizer Desejo. Junho 2009 - back |
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